segunda-feira, 18 de março de 2013

Bem-te-vi



Mary dormia sobre a maciez dos seus lençóis, quando foi delicadamente despertada pelo canto do bem-te-vi. O passarinho, de peito amarelo e som carinhoso, se encontrava no jardim de inverno da casa bonita. Mary foi despertando como quem deseja ver duas versões da vida: a que explicaria suas dores articulares e a que justificaria sua alma delicada.
Ela entendeu que o bem-te-vi dizia: - Te achei, desperta por que a manhã vem surgindo, linda como tudo que nasce. É hora dos seres vivos louvarem ao Criador, de agradecer pela vida, encher os pulmões de ar e respirar sonhos. É hora de ser livre e leve como tudo que brota da vontade de Deus. Nesse momento, todo o universo aproveita a atmosfera dessa manhãzinha para contemplar a beleza do próprio Deus.

E o passarinho insistia – Bem-te-vi, bem-te-vi, bem-te-vi – e Mary escutava – ainda bem que te vi, te encontrei, te acordei. Ainda que quase tudo esteja em silêncio, vim cumprir a minha missão e te avisar: - Eis que vem aí o sol e com ele outro tipo de despertar, aquele que não dá o direito de despertar naturalmente, aquele em que parece que o mundo inteiro acordou de uma só vez. Ele é enorme e eu sou muito pequenininho. Próprio para te acordar em silêncio, em meio aos teus anseios e utopias.

Mary insistia: - Por tudo isso, esse instante é tão lindo que não dá vontade de despertar. Quero amanhecer, como amanhecem os dias, com o encanto dos pássaros, executando uma sinfonia para o Pai Maior. E todas as árvores bailando ao som da mesma sinfonia. As cachoeiras, com aparência menos imponente, oferecendo todo o seu jorrar a Deus e as ondas do mar se oferecendo para banhar vidas. Quero despertar como quem nasce, mesmo que este nascer pareça um ressurgir das cinzas...

Um raio de sol começava a brilhar no basculante da janela do quarto de Mary, e um vendedor de frutas gritava na calçada, oferecendo os seus produtos com toda a força de seus pulmões. Da cozinha da casa vinha o cheiro delicioso de um café, era Rita a secretária doméstica, que de tão silenciosa parecia entender os desejos da patroa. De repente, o bem-te-vi parou de cantar e de encantar o jardim, o seu silêncio dizia: - Já fui! Agora são os homens que acordam os homens. Era a mais pura verdade.

A partir dali, mãe discutia com o filho o horário de ir para escola. Marido nervoso pensava, a mil por hora, com a complexa pauta do seu dia na cabeça. Lojas começavam a abrir suas portas. O que restava de inocente era o sorriso das crianças e a visita à padaria, para comprar o pão. Feliz a pessoa que deseja sonhar novamente o mesmo sonho. E feliz o homem que tenta mudar e crescer, um pouco que seja, a cada dia. Infeliz a criatura que, de tão avarenta, ao acordar veste a alma pelo avesso.

A essas alturas, Mary já imaginava pessoas que já acordaram com os versos de Chico Buarque na alma: “Tem dias que a gente se sente/ Como quem partiu ou morreu/ A gente estancou de repente/ Ou foi o mundo então que cresceu...”. Na verdade não é difícil sentir-se assim não, se sintonizarmos mais este verso do poeta: “Roda mundo, roda gigante/ Roda moinho, roda pião/ O tempo rodou num instante/ Nas voltas do meu coração...”.

A poesia é assim, poderosa. Existe nas coisas que compõe a vida e existe também nas coisas que a confundem. Mary levantou, tomou um banho de deusa, vestiu sua roupa singela, desejou que o mundo fosse feliz só por um minuto, que cada pessoa aproveitasse para se (re)construir, caminhar como se fosse em plumas, conversar como se fosse com Deus e ter a graça de alcançar todas as metas desejadas. Após o café, ela foi iniciar o seu dia, tentando mantê-lo num ritmo de paz...

Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus. (Mateus 18:3)

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