sexta-feira, 6 de abril de 2012

FERNANDO: UMA PESSOA


Fernando, uma criança de rua com roupa suja e alma limpa, foi quem me inspirou a fazer uma crônica sobre a Páscoa. Ele se encontrava sentado na rampa de um renomado supermercado. Então imaginei que ele comparava aquele lugar a templos divinos, nos quais Jesus renasce em todos os natais e ressuscita em todas as Páscoas, de forma colorida, alegre, saborosa e doce; mas apenas para os que são ricos.
Essa criança que nunca recebera uma aula de cristianismo e que, nas poucas vezes em que ouviu falar sobre Jesus, o fez através de ecos de missas, escutadas das calçadas das igrejas; enquanto mendigava no vaivém dos cristãos, se perguntou: Por que a Páscoa para os pobres é só indiferença e para os filhos dos ricos é festa? Será que se eu comesse um ovo grande de chocolate, Jesus nasceria para mim também? Logo lembrou que antes que isto acontecesse, levaria uma chibatada ao som de: “pega ladrão!”
De seu sonho sem recheio, acordou para a realidade, quando foi expulso da calçada por um vigilante. De tanta raiva, teve um insight: está tudo errado, coelhos não põem ovos e Jesus não é cruel. Esses chocolates adoçam a boca dos que fazem da minha vida uma amargura eterna e Jesus, se tivesse aqui, acabaria com essa injustiça e me ensinaria a ser gente; eu que sou só um menino.
Então, relembrei Pessoa sob a máscara de Álvaro de Campos: “Não sou nada. / Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada. / À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. (...) Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo? (...) O mundo é para quem nasce para o conquistar / E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão”.
E continuei tentando alcançar a mente da criança e do poeta, sutilmente conversando comigo mesma e com o universo daquele menino; imaginando o certo no incerto de uma inteligência cósmica, que o mundo ignora. O menino atravessou para uma praça e viu uma menina comendo chocolate e continuei pensando no que disse Fernando Pessoa em seus versos: "Come chocolates, pequena; / Come chocolates! / Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. (...) Come, pequena suja, come! (...) E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu. (...) Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! / Mas, eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho, / Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.” 
Nesse instante, caro leitor, juro que senti a dor da poesia; mas, tinha que continuar a crônica e me atrevi a ler, mais uma vez, a mente daquela criança de rua, perdida entre a Inteligência Divina e a ignorância do homem, e que não precisava de “santos” do capitalismo, nem de “doutores dos templos” para ser salva. Foi quando os olhos da criança me disseram: “Eu sempre quis entender tudo sobre o mundo.”
Eu imaginei, pela lógica dos perigos da indiferença social, que um coleguinha de rua, com a mesma idade, embora com o rosto bem mais envelhecido, já havia lhe batido no ombro esquerdo e dito: “Deixa de ser careta bicho! Aos seis anos eu pensava em chocolate. Aos sete, eu só pensava em cola. Hoje meu barato é maconha. No ano que vem é bem capaz d’eu só pensar em crack.”
A criança mendiga, que eu sabia pessoa, me fez lembrar outros versos: “Calcando aos pés a consciência de estar existindo (...). Morrerá depois o planeta gigante em que tudo isso se deu", pois em momentos assim “Sempre o impossível [é] tão estúpido como o real”. Então, senti que o mundo agonizava naquele menino.
Em seguida, o pequeno Fernando que só queria ser gente, saiu mascando o nada do tudo que lhe faltava. E eu, da janela da vida, nem me atrevi a dizer pelo menos estes versos do grande poeta: “Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena” ─ de tão hipócrita que me senti. Apenas deixei ecoar, na minha consciência culpada, a certeza da “essência musical [de] versos inúteis”, e dei-lhe apenas um chocolate perguntando: ─ Garoto, como é seu nome? Ao que ele respondeu: ─ Fernando! Então, fiz uma segunda pergunta: ─ E o que você é? E a resposta veio com uma certa indignação: ─ Oxente! Uma PESSOA! Repensei, voltei e dei mais um chocolate. E sai me sentindo em débito espiritual e moral com todas as crianças pobres em todas as Páscoas. Enfim, me irmanei ao pequeno Fernando pela força da poesia do grande, e à alma dolorida do mundo.
E disse Jesus: Deixai vir os pequeninos a mim e não os impeçais, porque dos tais é o Reino de Deus. Em verdade vos digo que qualquer que não receber o Reino de Deus como uma criança de maneira nenhuma entrará nele. (Marcos 10:14-15).

Um comentário:

  1. Lindo priminha! Fiquei emocionada! Vida vivida de formas tão inexplicáveis, mas, evidentes em seus desígnos frente os fatos que vivenciamos! Respeito, amor, responsabilidade, solidariedade!
    Não...... para mim falta de representação política comprometida e responsáveis! Pena! É! não lutamos, cruzamos os braços! Eles fazem o que acham mais cômodo e lucrativios para eles! Beijo no coração priminha! Linda crônica! Parabens! Você retratou a realidade de muitos cidadãozinhos que não sabem o que são - gente, outro ser! ...........Para mim grandes cidadãos e que fariam a diferença caso fossem reconhecidos como seres Vivos que têem a mesma estrutura física e psiquica de filosofar, de expressar politicamente seus anseios e expectativas de una vida vivenciada com homem - cidadão!!!!!!!!!

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